Game of Thrones: achar que Daenerys enlouqueceu é não entender nada

É aqui que quero me opor a uma série de interpretações, a meu ver absurdas, de que o roteiro da série teria "estragado" o desenvolvimento da personagem Daenerys Targaryen, antes apontada como símbolo libertador e de poder feminino e agora supostamente uma mulher mimada e emocionalmente instável.

Game of Thrones, Season 8, Episode 5 - HBO

Uma das minhas cenas favoritas em Game of Thrones ocorre entre Cersei Lannister e Lorde Baelish, o Mindinho, no primeiro episódio da segunda temporada. Em meio a um diálogo delicadamente desafiador, Baelish diz ter descoberto uma verdade que famílias proeminentes, como a dela, muitas vezes acabam esquecendo: “conhecimento é poder”.

Em questão de segundos, Baelish encontra-se detido pelos guardas de Cersei e com uma faca afiada ameaçando rasgar sua garganta. Cersei retruca: “poder é poder”.

Saltando diretamente para o episódio do último domingo, vemos Daenerys Targaryen e sua Mão, o anão Tyrion Lannister, em outro momento tenso, na véspera da batalha de King’s Landing. Ao indagar Tyrion sobre os motivos de Sansa Stark ter lhe contado que Jon Snow é um Targaryen, e portanto herdeiro do trono reclamado por Daenerys, Tyrion responde que Sansa confia nele.

Daenerys, mostrando total sanidade e sagacidade política, revida: “Sim, ela confia em você. Ela confiou em você para espalhar segredos que poderiam destruir a sua própria rainha”.

É aqui que quero me opor a uma série de interpretações, a meu ver absurdas, de que o roteiro da série teria “estragado” o desenvolvimento da personagem Daenerys Targaryen, antes apontada como símbolo libertador e de poder feminino e agora supostamente uma mulher mimada e emocionalmente instável.

DAENERYS X SANSA

Desde o primeiro encontro entre Daenerys e Sansa em Winterfell paira certo suspense a respeito da independência do Norte em relação ao comando central do Trono de Ferro. Sansa defende que o Norte jamais se curvará novamente, ao passo que Daenerys demanda seu reinado sobre os Sete Reinos.

Todas as outras grandes questões já foram resolvidas. O Rei da Noite e seu exército sucumbiram e Cersei Lannister foi derrubada do Trono de Ferro. Resta apenas uma: o que será da relação entre Winterfell e King’s Landing, ou seja, entre Sansa e Daenerys, disputa que passa naturalmente pelo papel a ser desempenhado por Jon Snow no próximo e último episódio.

De qualquer forma, entendo que Daenerys é plenamente capaz de pensar a frente de seu tempo, como já fez muitas vezes anteriormente, e fez novamente ao queimar King’s Landing com parte significativa de seus moradores inocentes.

Ao destruir a cidade que abriga o Trono de Ferro e torrar milhares de pessoas vivas, Daenerys envia um recado a Sansa. Contra a informação espalhada por Lady Stark para derrubar sua pretensão ao trono, ela decidiu mostrar que poder é poder.

Já Sansa Stark foi aprendiz de Lorde Baelish. Muito do que ela sabe e da forma como se comporta diante das tramas políticas de Westeros é fruto dos tempos que passou ao lado de Mindinho, em sua luta diária para sobreviver a todas as adversidades que caíram sobre ela.

Com isso a série mostra, de forma realista, que tomar o Trono de Ferro não é o final da disputa pelo poder em Westeros e que, sabendo disso, Daenerys ameaça com fogo e sangue todos os que não se ajoelharem diante de sua coroa. O pano de fundo das chamas sobre a cidade mais importante é a neve amontoada no Norte.

A CONQUISTA DE WESTEROS

Verdade seja dita, Daenerys é uma conquistadora e o fato da mãe dos dragões ser quebradora de correntes no seu continente de origem não impõe que ela se comporte da mesma forma agora do outro lado do mar.

Ela tentou, realmente, mas logo viu que não era amada por ninguém, muito menos considerada soberana legítima. Ela, aliás, já havia sido alertada para esse fato no episódio 8 da quinta temporada. Foi Tyrion quem a avisou, numa das primeiras conversas que tiveram, enquanto o anão ainda suspeitava que seria condenado à morte por ser irmão de sua inimiga.

Sem amor, leia-se, sem o consenso dos súditos, seu mais efetivo instrumento de dominação é o medo.

Carl Schmitt tem uma interessante explicação para a virada de atitude de Daenerys. O fenômeno da “tomada de terra” é, historicamente, um ato constituinte de todo o direito posterior, entendido como ordenação de um determinado local. O direito, fundado no poder, é um fenômeno localizado geograficamente e historicamente.

Para fundar uma ordem, contudo, através da tomada de terra, não necessariamente deve haver destruição. Pode se tomar a terra por dentro de determinada ordem espacial pré-existente, e ser reconhecido imediatamente pelos povos que antes reconheciam a antiga ordem; pode se tomar a terra e fundar um novo nomos (ato constituinte de ordenação do espaço), o que implica destroçar as “molduras” da ordem anterior. Isso tudo, naturalmente, excluindo os casos onde inexistia qualquer ordem antes da tomada da terra.

Daenerys não apenas está demolindo a moldura, algo cuja intenção já havia sido indicada quando ela afirma que não quer “parar a roda”, mas “quebrar a roda”, como para isso está praticando uma sequência de atos fundamentalmente hobbesianos.

Em outras palavras, ela ameaça regredir Westeros ao “estado de natureza”, onde não vigora qualquer ordem, apenas, neste caso, fogo e sangue. Contudo, lembra Schmitt, o “estado de natureza” pode até ser “terra de ninguém”, mas jamais pode ser entendido como “lugar nenhum”.

Devidamente situado em seu contexto histórico, Thomas Hobbes localiza o “estado de natureza” no Novo Mundo. Quando escreve Leviatã, aponta os “americanos” como homo homini lupus (o homem é o lobo do homem).

Ainda que nesse caso de Game of Thrones o lobo não seja o melhor exemplo, Daenerys definitivamente ameaça ser um dragão.

A libertadora em suas terras e que agora age com violência praticamente indiscriminada não é um fenômeno da ficção. No século XVI foram estabelecidas as linhas de amizade (amity lines), inicialmente de forma secreta, no tratado de Cateau-Cambrésis (1559). Essas linhas separaram o Velho Mundo europeu do Novo Mundo americano e deram origem à expressão “beyond the lines” (além das linhas).

Deste lado da linha, no Novo Mundo, não havia ordem, apenas o “estado de natureza”, enquanto do outro lado, no Velho Mundo, havia espaço para a paz. Isso não livrava os territórios europeus de guerras internas, mas essas guerras ocorriam sob determinada ordem, a ordem da Europa cristã.

Para o Novo Mundo restava a ausência de limites jurídicos para guerrear. É nesse contexto que o século XVI europeu foi capaz de assistir o cristianíssimo rei francês aliar-se aos protestantes contra o rei católico espanhol, sem que isso implicasse em demolição total da ordem civilizacional europeia.

Aí está o fenômeno da circunscrição da guerra, que torna historicamente factível que a quebradora de correntes aplique sua arma de destruição em massa em outra localidade, onde não vigora o ato constituinte realizado por ela em sua localidade original.

A DECISÃO

Para permanecer em Carl Schmitt, podemos entender o soberano como aquele que transcende qualquer validade da ordem legal existente. É atributo do soberano poder decidir se a normalidade e a estabilidade foram restauradas após um momento de exceção. Quando, portanto, Daenerys recusa o sinal de rendição – os sinos tocando – ela já é Rainha.

Visivelmente em conflito interno, ela resolve que a normalidade só será imposta quando tudo que é tocado pela Fortaleza Vermelha estiver dizimado. Tocar os sinos pode ter sido, até então, um costume válido, uma forma especificamente “westerosiana” de ordenar a guerra e a rendição. Não mais.

O que teria levado ela a praticar esse ato tão repulsivo e que foi tido como sinal de desequilíbrio por parte da audiência? Um elemento já está posto: o poder, tanto em sua forma tangível e presente quanto em sua forma futura, como expectativa de poder diante de seus próximos inimigos.

O isolamento de Daenerys é outro possível elemento. De seus principais companheiros (Sor Jorah, Missandei, Verme Cinzento e Daario Naharis), apenas um continua a seu lado, e justamente aquele que foi treinado para ser uma máquina de combate sem emoção.

Jon Snow é um potencial inimigo pelo simples fato de existir. Tyrion Lannister apresenta claros sinais de contestação de suas decisões, pois carrega princípios radicalmente opostos. Varys está morto por ter conspirado contra ela. Daario Naharis não está em Westeros, e Missandei foi degolada. No Norte, não conseguiu a confiança dos Stark e isso parece irreversível agora.

Isolada e diante de resistências, Daenerys optou por resolver a situação com a arma de destruição em massa que possui sob seu controle, um dragão.

DAENERYS KAMIKAZE?

Tampouco aqui pode-se dizer que foi irracional a tática militar utilizada por Daenerys. Nem a de Cersei, aliás. A preparação para batalha de King’s Landing foi uma exibição de arranjos táticos no qual um se saiu incontestavelmente melhor.

Cersei possuía vantagem numérica e a vantagem defensiva, mas também já havia testado as possibilidades do seu armamento. Derrubou um dragão. Por isso, a decisão de não se render mesmo diante do poder de fogo de Daenerys não estava sobre a mesa.

Não contava, contudo, que o sucesso de sua investida contra Daenerys no episódio anterior dependia do fator surpresa. Sabendo disso, Daenerys reverteu a tática para si e investiu contra o poder naval de Cersei voando contra a luz do Sol, o que deixou Euron Greyjoy de mãos atadas.

Podia dar errado, mas havia um método e era questão de tudo ou nada. Fato é que essa forma de ataque está descrita no livro Fogo & Sangue, de George R. R. Martin, como uma das utilizadas pelos primeiros conquistadores Targaryen, que também lutavam montados em dragões. Não à toa, a pior batalha de Daenerys foi contra o Rei da Noite, quando as condições climáticas eram desvantajosas.

As chances eram delicadas e podiam pender para qualquer lado, mas a imprevisibilidade faz parte da guerra. Ainda que Daenerys tivesse caído antes de vencer, seria difícil acusar seu comportamento de autodestrutivo.

Sua vitória, porém, soa mais como o bombardeio atômico dos Estados Unidos sobre o Japão. A guerra já estava vencida, mas o soberano impõe os novos padrões de normalidade. O que segue é um mundo de novas ameaças de destruição em massa que não haviam antes, com formas atualizadas de compreensão do medo. Esse medo, ou melhor, essa disparidade de forças, é onde repousa a autoridade da Rainha Targaryen.

O roteiro não tirou uma solução banal da cartola, descomplicando uma série que era profunda antes do descompasso entre as temporadas e os livros. Se houve falhas na temporada anterior, arrisco dizer que o final de Game of Thrones mantém o nível sofisticado das outras temporadas, recusando qualquer forma de maniqueísmo agora como quando entregou a cabeça de Ned Stark a Joffrey Baratheon.

O ícone de mulher empoderada é apenas uma simplificação rasteira do fenômeno extremamente complexo que representa a personagem Daenerys Targaryen, de dimensões políticas e geopolíticas. Por fim, as interpretações que acusam a série de machismo esquecem que do outro lado de Westeros está Sansa Stark, e que a disputa final pelo poder paira sobre gelo e fogo entre essas duas mulheres.

 

 

 

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