O atentado terrorista na Nova Zelândia não tem nada a ver com Suzano

Dois fatos chocantes foram misturados no noticiário da semana passada por ocorrerem num período de aproximadamente 24 horas entre um e outro, o massacre na escola Raul Brasil em Suzano, interior de São Paulo, e o atentado terrorista contra duas mesquitas na cidade de Christchurch na Nova Zelândia, que deixou 50 mortos e 48 feridos, até o momento. Além do curto lapso temporal entre essas tragédias causadas por indivíduos violentos, outros fatores de comparação foram levantados em meio ao debate na mídia e nas redes sociais, como os obscuros fóruns da internet frequentados por atiradores dos dois casos, o acesso a armas, a relação com entretenimentos violentos como videogames de tiro, problemas psicológicos, e etc. Porém, na verdade, os atiradores de Suzano não tem absolutamente nada a ver com o terrorista que atacou as mesquitas na Nova Zelândia.

O caso de Suzano está relacionado com outros casos de massacres, geralmente seguidos de suicídio, em escolas ou locais públicos, motivados por um descolamento e repúdio ao contexto social dos envolvidos, relacionados a frustrações profundas com o cotidiano e distúrbios mentais. Evidentemente esse tipo de problema está intrinsecamente conectado com determinações de ordem cultural, econômica, e até política, como já discutimos em outro momento, e sua comparação paradigmática é com a tragédia da escola Columbine nos EUA.

Já o atentado na Nova Zelândia tem raízes muito mais claras e bem delimitadas, sendo fruto de preconceito e intolerância política, racial e religiosa. Apenas de maneira muito superficial e abstrata é possível dizer que as duas tragédias estão conectadas, pelo uso da violência e pelo contexto de crise da sociedade capitalista no mundo todo. Mas, desse mesmo ponto de vista abstrato, também aparecem o aumento da pobreza,  da criminalidade comum, da violência doméstica, corrupção, guerras, e etc. O fato é que o capitalismo é um modo de produção que gera violência no seu próprio processo de reprodução social, e nos momentos de suas crises inerentes essas tendências se intensificam cada vez mais. O terrorismo sem dúvidas é uma das expressões mais radicais desse processo, seja coletivo ou individual, mas não pode ser confundido com as tragédias causadas por motivos muito mais profundos, complexos e ininteligíveis como é o caso de Suzano.

O terrorismo não é um fenômeno novo, nem recente na história do capitalismo, tampouco é exclusivo de algum tipo de grupo. Mas a ideologia propagada pelos Estados hegemônicos, através da academia e dos meios de comunicação, é que o terrorismo seria um fenômeno ligado a algum lado específico do espectro político e a determinadas nações e religiões. Historicamente, foram as nações e religiões não-ocidentais, e partidos e organizações de esquerda ou nacionalistas da periferia subdesenvolvida, que mais foram estigmatizados e criminalizados como terroristas.

De maneira geral, o terrorismo se caracteriza por ataques localizados que atinjam alvos fora de uma situação de conflito estabelecido como uma guerra, de modo a criar medo e pânico não apenas nas vítimas diretas, mas nos representantes do Estado e na sociedade em geral, para obter objetivos políticos ou econômicos. É possível falar até em objetivos criminais, como é o caso do tráfico de drogas, a exemplo da Colômbia e do México. Pablo Escobar foi mandante de muitos atentados à bomba, e chegou a derrubar um avião nos anos 1990 matando centenas de pessoas, em sua guerra contra o governo colombiano e norte-americano. Nesta seara econômico-criminal encontra-se também o interesse da indústria bélica, na qual praticamente não há diferença entre o tráfico ilegal de armas e as compras governamentais, muito bem retratadas nos filmes “O Senhor das Armas” com Nicholas Cage, Jared Leto, e Ethan Hawke, e “Cães de Guerra”, com Jonah Hill e Bradley Cooper.

Obviamente, as forças políticas que não detém o poder estatal-militar, ou que mesmo sendo estatais estejam em conflito assimétrico contra potências poderosas, tornam-se propensas a esse tipo de método de luta. Mas o uso da violência em si não é o que caracteriza o terrorismo, pois guerrilhas, rurais ou urbanas, praticam atos de violência, mas não necessariamente terroristas. Para tal conceituação, é preciso que haja uma extrapolação intencional e excessiva dos efeitos da violência a vítimas não relacionadas com o inimigo. A criação do medo e paranoia coletiva é o método do terrorismo, e não apenas a destruição ou coerção de um inimigo.

Por outro lado, com um pensamento contra-hegemônico, é possível falar em terrorismo de Estado para conceituar a atuação de Estados e governos que também praticam atos terroristas na busca de seus objetivos, inclusive, e na verdade, principalmente, das potências militares e econômicas. O imperialismo não tem pudor de praticar nenhum tipo de atrocidade, desde genocídios (Holocausto pela Alemanha) e utilização de bombas atômicas (Hiroshima e Nagazaki, pelos EUA), até a sabotagem e financiamento de organizações terroristas estrangeiras (Osama Bin Laden e a Al Qaeda foram financiados pelos EUA antes de se voltarem contra eles).

Apesar do esforço do establishment ocidental de tentar afastar de seus núcleos de poder e ideológicos as práticas terroristas, o fato é que o terrorismo não é praticado apenas, e nem principalmente, contra os centros de poder hegemônicos. Além disso, as próprias estruturas ideológicas e culturais das potências ocidentais sustentam o surgimento do terrorismo ligado aos interesses dominantes nessas sociedades, sendo os temas da supremacia racial branca e o fundamentalismo cristão, os vetores fundantes de organizações terroristas como a Ku Klux Klan, e diversos atentados, como o mais recente em Christchurch na Nova Zelândia.

O autor dos disparos nas mesquitas, Brenton Harrison Tarrant, é um australiano branco de 28 anos. Ele transmitiu sua ação ao vivo pelas redes sociais com uma câmera em seu capacete, o que gerou a sensação de ter a exata mesma visão do terrorista para quem assistia, emulando a experiência dos jogos de videogame de tiro em primeira pessoa. Ele usava roupas de combate, um colete a prova de bala, e utilizou um fuzil no ataque. Além disso, ele possuía explosivos e recarregou a arma várias vezes. Durante a ação, o atirador ouvia músicas de cunho militar, como uma marcha atribuída ao exército dos Estados Confederados do sul escravocrata na Guerra de Secessão dos EUA, e uma canção chamada “Serbia Strong” que louva Radovan Karadzic, ex-presidente da Sérvia condenado por crimes de guerra e contra a humanidade devido ao massacre de Srebrenica, na Bósnia, em 1995.

Frame do vídeo transmitido pelo próprio terrorista nas redes sociais.

O terrorista escreveu um manifesto de 73 páginas no qual se declara um supremacista branco contra a diversidade racial, defensor de Donald Trump e do Brexit. Ele cita o Brasil como exemplo de país degenerado pela diversidade cultural e miscigenação racial, e afirma sua origem britânica, como descendente de escoceses, irlandeses e ingleses, lamentando que os europeus são cada vez menos numerosos devido às baixas taxas de natalidade e alta imigração, o que levaria à completa substituição racial e cultural dos povos europeus. Tarrant diz que o ataque às mesquitas muçulmanas seria a vingança contra o atentado praticado por um imigrante do Usbequistão, Rakhmat Akilov, que matou 5 pessoas em Estocolmo na Suécia em abril de 2017.

Diante disso, a imprensa hegemônica reluta em chamar o ataque do que realmente foi: um atentado terrorista de extrema-direita contra muçulmanos e imigrantes, verdadeiro crime de ódio, motivado por racismo e intolerância religiosa, praticado por um supremacista racial branco e cristão. A abordagem dominante dos meios de comunicação dos países centrais ocidentais busca deixar a designação clara e inequívoca do terrorismo para os atentados praticados por fundamentalistas islâmicos. O ataque com sequestro e colisão de aviões nas torres do World Trade Center em Nova York em 11 de setembro de 2001 é o paradigma máximo do que se chama terrorismo pela mídia do establishment ocidental.

As invasões do Iraque e do Afeganistão foram em parte justificadas pelo combate ao terrorismo, com o pretexto de que estes Estados financiavam e protegiam organizações terroristas, notadamente a Al Qaeda de Osama Bin Laden responsável pelo 11 de setembro. No entanto, a hipocrisia é absolutamente flagrante, pois Bin Laden havia sido financiado pelos próprios EUA nos anos 1980 para combater, também com terrorismo, a ocupação soviética no Afeganistão. Mas após a queda da União Soviética e o fim da Guerra Fria, os interesses geopolíticos dos EUA no oriente médio se alteram, e a Al Qaeda volta-se contra a presença norte-americana na região, culminando com o atentado em Nova York, dentre muitos outros na mesma época.

Os anos 2000 foram marcados por diversas intervenções militares dos EUA no oriente médio. A deposição de Saddam Hussein no Iraque, de Muammar al-Gaddafi na Líbia, o assassinato de Osama Bin Laden em seu esconderijo no Paquistão, bem como a prisão e morte de vários líderes da Al Qaeda e do Talibã no Afeganistão, não alteraram o quadro geral que gera o terrorismo na região.

No entanto, a tendência de atentados de grande porte como os do 11 de setembro diminuiu, muito pela paranoia e histeria permanente criada desde então, com a intensificação dos aparatos de segurança de contra-terrorismo dos Estados, a chamada “guerra ao terror”, principalmente por parte dos EUA, inclusive com a progressiva diminuição de direitos civis e individuais, notadamente dos imigrantes. Aliás, a construção de um muro na fronteira com o México, foi uma das mais polêmicas promessas de campanha de Donald Trump, que ele tenta levar a cabo, até agora sem sucesso.

A tendência do terrorismo nos últimos anos tem sido a utilização do método chamado de “lobo solitário”, que é caracterizado por ações isoladas de individuais ou de grupos bem pequenos, sem articulações com alguma organização terrorista, apesar de poder ser estimuladas ou de alguma forma orientadas por organizações, a exemplo do Estado Islâmico, que chegou a ocupar largas faixas de território do Iraque e da Síria no vácuo deixado pela destruição do Iraque e da guerra civil síria. Aliás, o Estado Islâmico aparece como novo paradigma da imprensa hegemônica do ocidente sobre esse tipo de atentado terrorista, mantendo a estigmatização das nações e religiões não-ocidentais, como se o terrorismo fosse causado pela ausência dos valores culturais ocidentais.

O atentado de Christchurch mostra o contrário. Os valores centrais do mundo ocidental são frequentemente utilizados como motivações de atentados terroristas. Diversos exemplos de atentados e organizações terroristas de extrema-direita no ocidente podem ser citadas, sendo a Ku Klux Klan nos EUA, uma das mais famosas, bem como o atentado à bomba em Oklahoma City em 1995, que matou 168 pessoas e feriu mais de 680, perpetrado por Timothy James McVeigh, ex-militar americano, ativista armamentista e xenófobo, com histórico de racismo ainda no exército.

Mas um exemplo mais marcante e recente ocorreu na Noruega em 22 de julho de 2011. Anders Behring Breivik plantou um carro-bomba próximo ao prédio do gabinete do primeiro-ministro na capital Oslo, matando 8 pessoas. Horas depois, na ilha de Utøya, o terrorista abriu fogo dentro de um acampamento da juventude do Partido Trabalhista Norueguês, utilizando um rifle semi-automático e uma pistola, matando 69 pessoas, totalizando 77 mortos no atentado. Estava prevista uma visita do primeiro-ministro à época, Jens Stoltenberg, ao acampamento juvenil. Stoltenberg hoje é secretário geral da OTAN.

A ânsia islamofóbica da imprensa europeia e norte-americana fez com que fosse divulgada a versão de que o atentado era responsabilidade de alguma organização islâmica devido o envolvimento da Noruega em ações militares imperialistas da OTAN na Líbia e Afeganistão. Mas a prisão de Breivik elucidou as motivações do atentado. O terrorista norueguês, assim como Tarrant na Nova Zelândia, postou na internet um manifesto expressando suas ideias e confessou a autoria do ataque em seu julgamento. Breivik pregava a islamofobia, a homofobia, o anti-feminismo, e o racismo, e considerava o Islã e o marxismo as maiores ameaças ao ocidente e ao cristianismo.

Brenton Tarrant citou Anders Breivik e o atentado de 2011 como inspiração. Tarrant, assim como Breivik, não cometeu suicídio e também foi preso. Como se vê, a violência brutal que atingiu a Nova Zelândia, e horrorizou o mundo, não é um fato isolado, e não está ligada à valores alheios ao centro hegemônico e imperialista do capitalismo. O que ocorreu foi um atentado terrorista de extrema-direita, realizado com sofisticados instrumentos militares, e não tem nada a ver com a tragédia na escola em Suzano.

Brenton Tarrant fazendo sinal obsceno com as mãos para os fotógrafos no tribunal em Christchurch na Nova Zelândia em 16 de março, de 2019.
Foto: Mark Mitchell/New Zealand Herald/Pool via REUTERS.

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