A esquerda radical em seu labirinto

A esquerda radical representada por Boulos se submete ao hegemonismo de Lula e do PT.

Tenho muito viva na memória a eleição de 2006. Com quase 17 anos votei pela primeira vez para presidente. Àquela altura, meu interesse pelo socialismo me levou naturalmente para a candidatura mais radical à esquerda, que naquela eleição era representada pelo PSOL e pela candidatura de Heloísa Helena. Alguns anos depois, já na faculdade, vi um discurso da ex-senadora e ex-candidata em uma atividade na faculdade, organizada pela juventude do partido. Ela bradou contra as concessões do PT ao “grande capital” e chamou Lula de “sua santidade barbuda que não pode ser criticada”, relembrando o apelido dado ao líder petista por Brizola nos anos 1980. Em 2010, me engajei ativamente na campanha de Plínio de Arruda Sampaio para presidência, mesmo sem ser filiado, de forma voluntária. Me encantava ver aquele senhor, quase um Dom Quixote, bradando contra o “bolsa-empreiteiro” nos debates (em tempos pré-Lava-Jato, diga-se de passagem). Me lembro de uma resposta dele a Dilma em um dos debates: “Olha Dilma, eu permaneci no mesmo lugar de sempre, o problema é que todos vocês vieram pra direita!”.

Durante a minha graduação, entre 2008 e 2012 esse era o tom da esquerda radical que atuava no movimento estudantil em relação aos partidos hegemônicos na vida nacional. Coloco aqui nesse grupo PSOL, PSTU, PCO, PCB e LER-QI. O tom extremamente crítico ao PT, que escancarava visões táticas e estratégicas inconciliáveis, passou a mudar em 2015, com o processo de impeachment contra Dilma Rousseff. Não sem traumas, é verdade, vide o racha do PSTU, por exemplo, que se dividiu entre aqueles que defendiam um posicionamento em defesa do mandato da presidente e pela denúncia do golpe (que acabaram formando o MAIS, hoje corrente interna do PSOL), e aqueles que entendiam ser o impeachment um processo legítimo contra os desvios éticos realizados pelo PT no decorrer de mais de uma década. A própria LER-QI, agora transmutada em MRT, torna-se corrente interna no PSOL também nesse ano. O fato é que o processo de impeachment e a perseguição jurídica do então juiz Sérgio Moro contra Lula não atingiu só o PT, mas também levou a uma mudança de rumos consideráveis na esquerda radical brasileira.

É interessante notar que a reaproximação dessas forças com o petismo (com a exceção do PSTU) foi, cada vez mais, ganhando um tom de autocrítica em relação ao posicionamento radical e intransigente levado a cabo anteriormente em relação aos governos petistas. A meu ver, corretamente. De fato, o esquerdismo do período anterior ignorou avanços reais que as gestões petistas trouxeram para o país, principalmente para a camada mais pobre da população. Mas essa autocrítica avança para a adesão ao petismo e suas teses e narrativas com a prisão de Lula em 2018. A essa altura o PCO já se colocava como grande defensor do PT, contra as “forças do imperialismo”, sendo muitas vezes, como diz o ditado, mais realista que o próprio rei. Quanto ao PSOL, outro evento foi determinante para essa reaproximação com o PT para além dos processos de Lula: a filiação ao partido de Guilherme Boulos em 2018. Liderança do MTST e da Frente Povo Sem Medo, Boulos chega ao PSOL com o aval do ex-presidente para disputar a eleição daquele ano. O fato é que após a prisão de Lula, toda a esquerda radical aceitou, sem grandes nuances, que a grande questão nacional passava a ser a luta pela liberdade do ex-presidente. A esquerda radical adere em peso ao “Lula Livre”.

A questão sobre a prisão de Lula e a farsa judiciária contra o ex-presidente, hoje fartamente documentada e legitimada pelo STF com a suspeição de Moro, nunca foi uma questão entre as lideranças do campo progressista, mesmo daquelas que não elegeram a pauta “Lula Livre” como o centro das suas atenções e formulações políticas. As sentenças foram criticadas desde o primeiro momento, basta ver, por exemplo, declarações de Ciro Gomes e Marina Silva desde a primeira hora. Mas o que me interessa aqui é analisar como, politicamente, esse é um momento claro de inflexão para a esquerda radical no Brasil.

Eu diria, já adiantando parte da conclusão da minha análise, que o PSOL, enquanto principal força desse campo que estou denominando como esquerda radical, teve seu ponto de virada definitivo no primeiro debate presidencial de 2018, quando seu candidato Guilherme Boulos, em sua primeira fala naquele debate mandou um eloquente “Boa noite, presidente Lula”. Algo semelhante a isso seria impensável vindo de um candidato do partido em 2006, 2010 e mesmo em 2014. O cálculo era bastante claro: com Lula preso e inelegível, era legítimo se colocar como alternativa visando angariar o espólio lulista, já que o partido havia sido fiel defensor do PT contra os ataques recebidos desde 2015. Vale lembrar que essa candidatura foi construída em coligação com o PCB, o que leva a crer que esse cálculo também era validado pela direção desse partido, além, é claro, de MRT e MAIS, enquanto correntes do PSOL.

Nesse momento, o PT não só confirma a sua hegemonia sobre boa parte do campo da esquerda como o expande, abrangendo forças que até então buscavam se viabilizar enquanto alternativa ao petismo. Em outras palavras, se consolida a partir desse momento a narrativa petista de que não existe esquerda possível no Brasil fora das fileiras do PT. Para partidos que nasceram e se mantiveram por anos a fio com um discurso em defesa de uma via revolucionária e contra qualquer tipo de conciliação de classes, essa mudança não é superficial, pelo contrário, ela se anuncia como um caminho sem volta. Aparentemente existiu um ganho eleitoral para o PSOL, se levarmos em conta o resultado das eleições de 2020, principalmente com o desempenho do partido em São Paulo, com Boulos chegando ao segundo turno e com a ampliação da bancada de vereadores do partido, avançando sobre redutos historicamente petistas, dado a inexpressividade do candidato lançado pelo partido. O próprio PCB cresceu entre a juventude universitária surfando a mesma onda e aproveitando o momento para um “revival” do modelo soviético e de seu líder mais polêmico por meio de alguns criadores de conteúdo do partido. Mas qual é o significado simbólico dessa mudança no médio e no longo prazo?

A meu ver, a esquerda radical tem um papel muito importante no jogo democrático, que é o de tensionar e puxar o pêndulo da política para o lado dos trabalhadores, seja como oposição a um governo de direita ou a um governo de centro-esquerda. Nesse segundo caso principalmente, tensionar um governo moderado para a esquerda é uma forma importante de angariar ganhos para os trabalhadores dentro dos acordos institucionais necessários para a governabilidade. Agora, quando as forças políticas responsáveis por esse movimento são cooptadas, o que resta?

Pois bem, com Lula elegível novamente o tabuleiro do xadrez político brasileiro se movimenta e lideranças do PSOL já defendem abertamente que o partido renuncie à candidatura própria para apoiar o petista em 2022. Da mesma forma que nessa semana importante figura do partido chamou de “questão secundária” o fato de Lula afirmar que o modelo de economia mista seria o ideal para empresas estatais estratégicas como Furnas, a Eletrobrás e a Caixa. “Não vamos criar marola”, disse o dirigente. Ambas as colocações seriam inimagináveis vindas de lideranças do mesmo partido há uma década, já que o PSOL nasceu justamente após a aprovação de uma Reforma da Previdência pelo governo Lula em 2003, que foi lida como “traição” pelas lideranças que acabaram saindo e fundando o novo partido. O que, afinal de contas, simboliza essa adesão pouco disfarçada ao social-liberalismo lulista?

Por fim, algumas impressões sobre tudo isso à guisa de conclusão: se confirmada a candidatura de Lula (é sempre bom lembrar que o ex-presidente ainda é réu e, afinal de contas, estamos no Brasil) o PSOL terá que definir se atravessará o Rubicão de vez ou não. Afirmo com grande convicção que o partido não sairá intacto dessa discussão, já que uma parte do PSOL continua fiel à sua origem e não aceitará essa guinada rumo ao PT, como é o caso de lideranças como Luciana Genro, por exemplo. Não acho impossível que uma parte das correntes do partido rume de volta ao PT, liderados por Guilherme Boulos. O PCO idem. Já o PCB, ainda que não anuncie abertamente a adesão ao programa social-liberal representado pelo PT, continua surfando na onda de olho na sua autoconstrução. A UP (Unidade Popular), novo partido da esquerda radical fundado em 2020, apoiou Boulos na eleição municipal do mesmo ano e não é improvável que siga o PSOL novamente em 2022. A única exceção aqui, como já disse anteriormente, fiel a sua linha das últimas décadas, continua sendo o agora nanico PSTU.

No fim das contas, Sérgio Moro e a Lava-Jato, que tanto miraram o PT, acabaram por atingir de morte a esquerda radical no Brasil, que por escolha própria frente a conjuntura que se colocou, decidiu por abandonar a sua autonomia, processo que tem tudo para se confirmar nas eleições do ano que vem. Independente do resultado da eleição de 2022, ao se ligarem umbilicalmente aos destinos do PT essas forças políticas deixam de ser a alternativa que por tanto tempo foram ao petismo, legitimando o seu programa social-liberal. Alguém pode dizer que existe o caminho de “tensionar por dentro”. Bom, se em 2003 já era impossível esse tensionamento interno (não à toa surge o PSOL) é bastante provável que agora em 2021, com Lula e seu status de semi-entidade, o quadro seja ainda pior. O eleitorado que hoje rechaça tanto PT quanto Bolsonaro continua tendo alternativas, mas por incrível que pareça, dado todo o histórico dessas organizações, nenhuma dessas alternativas se encontra na esquerda radical.

Como disse certa vez um querido professor de História Contemporânea em sua aula na universidade: “Um partido radical, quando se torna um partido da ordem, nunca mais deixa de sê-lo.”. É disso que se trata: a esquerda radical no Brasil, ao menos como a conhecemos nas últimas décadas, está em vias de desaparecer. E por escolha própria.

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